Sunday, August 09, 2015

ACALANTO
(Luz... Porto​)
"Eu vou rasgar meu coração
Pra costurar o teu"
(Chico Buarque e Edu Lobo)


    Naquele ano eu vira a morte de perto. Sentira o seu hálito. Por duas vezes. Não necessariamente a minha morte, mas a de minha irmã e de minha sobrinha recém-nascida. Os episódios foram próximos. Um provável acidente de carro e um problema sanguíneo sério. Meu Anjo da Guarda e os delas trabalharam com afinco e saímos sem grandes arranhões.
    Tive uma infecção. Não me lembro bem. Lembro de que mamãe chamou um médico da família. Um desses antigos que diagnosticavam emergências sem pedir exames. Um desses que sabiam ser médicos.  Medicou-me, fitou-me  e perguntou o que me preocupava. Contei-lhe os dois episódios. O da minha sobrinha era um longo processo. Ele me disse que receitaria mais uma coisa. Uma viagem. Perguntou-me se teria para onde ir. Pensei na casa da minha tia em Juiz de Fora. "Ótimo". "Mas, e a escola"? "Uma semana não fará diferença".
    Conversei com meu pai que aceitou me levar e me buscar. Liguei para tia Margarida. Já era burra velha para chamá-la de tia - e não o fazia. Era minha professora de Matemática. Fora minha professora de Alfabetização, embora eu, ávida por histórias e quadrinhos, tivesse aprendido a ler sozinha aos quatro, cinco anos. E escrevesse, com garranchos. Expliquei a situação. Tia Margarida não era coordenadora, mas tinha o perfil. Ela resolveria as coisas na escola e que eu não me preocupasse.
    Fomos para Minas, eu e meu pai. Estava triste. Prestes a completar 15 anos, questão de dias, comemoraria a data sem festa. Gostava da minha tia, dos meus primos. Era divertido ir para lá. Meu pai voltaria no dia seguinte, mas... ele teve um febrão à noite. Às vezes isso ocorria. Diziam que era por conta da malária que ele contraíra quando jovem. Cuidamos dele. Eu e minha tia. A febre era alta e ele tinha tremedeiras horríveis. Digo que cuidava, mas não sei se uma pirralha sabia cuidar. Só me lembro que desde muito pequena não arredava o pé da cama em tais ocasiões. Lia histórias da Luluzinha, que ele gostava. No fundo talvez o que eu fizesse fosse emprestar-lhe o meu Anjo da Guarda.
    O fato é que minha tia convenceu-o a ficar. Uma semana comigo. Era muito bom. Aconteceram coisas surpreendentes para mim, como assistir a um filme de 18 anos sem ter completado 15! E que filme! Golpe de Mestre. Adorei. 
    Chegou o dia 4. Parabenizaram-me, essas coisas. Minha irmã e meu cunhado enviaram um telegrama. O primeiro da minha vida. Eu com o pé atrás. Aquele dia 4 era o sétimo aniversário de morte do meu avô. Lá em casa mamãe, minha avó, minha tia, sentiam. No entanto, comemoravam o meu aniversário e disfarçavam a tristeza. Já minha tia Regina... Pois não é que a danada me surpreendeu? À noite teve bolo. Minha primeira reação foi de desdém, confesso. Queria torta. O bolo fora encomendado a uma boleira do bairro. Quando provei... Meus olhos marejaram. Estava uma delícia. E tinha o sabor do bolo do meu primeiro aniversário. Todos falavam desse bolo. Feito por uma prima e decorado. Nenhuma foto do meu primeiro aniversário... Nenhuma lembrança. Meu Anjo da Guarda soprou-me ao ouvido: "Você não queria saber como era? Pronto. É esse o sabor". 
    Depois minha tia abriu a sala. Era uma sala grande, com três ambientes. Os móveis tinham sido afastados. Ela colocou uma valsa na vitrola. Meu primo mais velho me conduziu pelo salão. Eu, que danço tão bem quanto uma vassoura, estava bailando! E com o meu primo tão querido! Depois meu pai me conduziu. Surpresa absoluta! Não sabia que meu pai dançava. Só vim a saber mesmo quando visitei a família em Sergipe. Além de cavalgar bem, meu pai era um pé-de-valsa! E as meninas ficavam enrabichadas por ele! Ele negou essa história até o fim. Mas eu sabia que era verdade. Soube em Sergipe...
    Voltamos. Eu, revigorada e orgulhosa. As coisas foram se ajeitando e se ajeitaram. No fim do ano houve a formatura de Primeiro Grau. Tá. Sou dessa época. Que formatura! Não queria participar porque achei muito caro. Meu pai não concordou. Comprei roupa nova, fui ao salão. Primeiro salão de verdade. Fiz unha, cabelo, massagem. A festa foi ótima. De primeira. Meu pai não foi. Nem minha mãe. Não era coisa para eles. Pensando bem, não era mesmo. Eles não suportariam a discoteca, o globo de espelhos. Seria uma afronta a ouvidos tão clássicos.
    O tempo passou, tantas vezes você rasgou seu coração por mim, meu pai. Não pense que me esqueci. Das noites em claro, velando meu sono, da mão na cabeça nas infecções intestinais. Do café, chá, para ser exata, à mesa, de manhãzinha, com o pão quentinho que você trazia da padaria. Àquela hora da manhã, só nós dois acordados e, muitas vezes, algum dos meus gatos. Depois descíamos e tomávamos rumos diferentes: você, o Rio, eu, São Francisco. O seu coração parecia o fígado de Prometeu. Rasgava-se e remendava-se.
    Por fim chegaram as horas em que tive de rasgar o meu coração. Não tão resistente quanto o seu. Eu o rasguei, meu pai. E o rasgaria de novo. Primeiro o câncer. Que não te levou. Do qual você se curou. Bem mais tarde, o AVC. Implacável. E lento. Você sempre foi osso duro de roer. Longos dias de visitas ao CTI. Visitas e plantões no quarto do hospital. Depois a volta para casa. A ajuda espiritual que tivemos. O apoio de amigos e familiares. Foi minha vez de pousar a mão na sua testa, de alisar seus cabelos, já ralos. De velar o seu sono. Mesmo com o sono pesado que tenho quando consigo dormir, mesmo estando em outro quarto, com a porta fechada e o ar refrigerado ligado, saltava da cama a qualquer acesso de tosse, qualquer coisa que te incomodasse. Mesmo estando em outro bairro no momento da sua passagem, senti-o. Uma brisa soprou, as cortinas se abriram, as cachorras uivaram. 
    Daqui a dois dias serão 15 anos sem você, meu pai. Quinze longos e arrastados anos. Eu queria um momento com você, talvez para dizer: "Eu te amo". Talvez para ficar a seu lado em silêncio, cerzindo, enfim, nossos corações.