Saturday, December 20, 2014

DA ARTE DE DAR E RECEBER 


(Luz... Porto)


A José Carlos Pacheco Fernandes


Assim que terminei meu curso de inglês, fiz uma prova nos moldes de Cambridge. Listening, Use of English, Reading Comprehension, Writing and Interview. Passei em primeiro lugar, embora não tenha levado os louros. A composição, que foi muito elogiada, versava sobre a infância, se não me falha a memória.
Lembro que peguei da pena e discorri, de um modo proustiano-tupiniquim, sobre a minha bicicleta. Como, quando a ganhei, o regozijo de aprender a andar de bicicleta, as rodinhas empenadas, minhas alegrias, solitárias e acompanhadas naquele selim. Por fim, a tristeza de ter crescido e de saber que minha Caloi de pneus brancos não servia mais para mim. A dor da separação e a constatação de que ela talvez fosse feliz com o novo dono: meu sobrinho, mas que eu, definitivamente não o era. Meio dramático o final, mas sou leonina dos fios do cabelo até os dedos do pé.
Não fiquei com o rascunho. Mas, dia desses, pensando com meus botões e zíperes, fiz uma lista mental dos grandes presentes que recebera. Falo de grandes. Significativos. Não de caros, embora alguns tenham sido, suponho.
Olho a meu lado e lá está ela. Que sempre esteve me acompanhando. Em mudanças, tempestades, bonanças. Mais folheada. Menos. Letras da capa, em couro, um pouco gastas. Mas sempre presente. Tão presente que até me esqueci que fora ela me ofertada por um amigo. Se alguém pensa que uma Bíblia é coisa banal, que as Igrejas dão a torto e a direita, esclareço. Não foi esta a minha experiência. Não foi assim lá em casa.
Lembro de um dia em que meu pai chegou com uma novidade: a BARSA, enciclopédia top ou quase top. De brinde, ganhávamos dois dicionários. Um inglês-português e outro português-inglês. E a cereja do bolo: uma Bíblia. Vinha em uma caixa dourada. Era grande, preta, folhas finas e borda dourada. Recheada de reproduções de grandes pintores. Apaixonei-me. Lia mais o Novo Testamento, mas via as pinturas referentes ao Antigo. Provavelmente por conta destas, sonhava sempre com o fim do mundo e outras desgraças. Um dia meu pai passou a BARSA, que utilizei até a época de faculdade, a meu sobrinho. A Bíblia foi junto. Chorei.
Mas dizem que Deus é, entre outras coisas, Aquele que escreve certo por linhas tortas. Ao final de minha graduação, prestei concurso público para um Tribunal e passei, para meu espanto. No dia do exame médico, conheci um rapaz, mais ou menos da minha idade. A afinidade foi instantânea e nos tornamos grandes amigos. Ele morava em uma rua literária e eu, em uma rua musical. Dois dos grandes assuntos de nossas conversas, que não se limitavam a isto. Religião, espiritualidade, astrologia também faziam parte do cardápio.
Eu saí do cargo, ele ficou. E nosso contato era constante. Uma espécie de Alberto Caeiro, ele me ensinou a beleza dos dias cinzas, a riqueza do outono. As delícias escondidas da cozinha mineira (de que eu não sou muito fã). Cedi ,contudo ao frango temperado com uma erva, significativamente batizada de ORA PRO NOBIS. Mostrou-me a beleza dos dias de tempestade, vista do alto do prédio em que trabalhamos. Estimulou-me a escrever.
Eu, Álvaro de Campos, sensacionista e rebelde, aprendi pouco. Não por falta de atenção. Por limitação mesmo. Eu, criança das cidades, sufocava com o ar puro das montanhas. "A calma que tinhas, deste-ma, e foi inquietação./ Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo./ Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir."
Passados tantos anos, separados pelas areias inexoráveis do tempo, te revejo e me dou conta de que nunca partiste. De que há uma parte tua em mim assim como há uma parte minha em ti. Tão simples! Basta olhar para o lado e ver A BÍBLIA DE JERUSALÉM, em edição de luxo, pelas Edições Paulinas. Só tu poderias ter me dado tal presente grandioso. Só tu terias percebido essa falta que eu sentia. Presente raro. Inesquecível. Tão inesquecível que grudou-se à minha pele, à minha alma, como se sempre o tivesse tido. Não me imagino sem ele. Apenas a memória falha. Não sei se foi aniversário, Natal, Páscoa. Não escreveste dedicatória. Não cabia em uma Bíblia.
Hoje, neste momento, se tivesse de escrever sobre a minha infância, não falaria da bicicleta. Nem do meu coelhinho tão amado. Falaria da Bíblia da BARSA e daquela que a sucedeu com dignidade e grandeza. E falaria, com certeza, da arte de dar e ganhar presentes. Presentes que se fazem presentes. Presentes que marcam uma vida inteira...

(RE)VISÃO



(Luz... Porto)






Outra vez te revejo agora,
Amor sincero de minha vida. 
Agora que o outono aflora 
E é tão dura a minha lida.

Na curva da escada, aquela,
Sempre espreitam dois fantasmas:
Um sabe a carinho e se rebela
Contra o outro que só quer miasmas.

O outro dizia ter prazer,
Prazer em todos os sentidos.
Como é possível gozo se ter
E deixar um amante assim partido? 

Outra vez te revejo, fico louca,
Pulando o velho portão.
O coração saía-me pela boca
Quando teus pés tocavam o chão.

Dói saber que depois de bodas de tormenta
De ausência e de aflição
Não passei eu de mera pimenta
A esquentar tua morna relação.

A saudade, ai, saudade do que poderia
Ter sido e simplesmente não foi.
Medo do bem que eu te faria,
Tornando-te Tigre ao invés de Boi.

Outra vez te revejo com carinho
Trago-te em mim, esteja certo,
De tua parte creio que, longe ou perto,
Não o sabes, mas vais sozinho.

O CORAÇÃO DAS TREVAS


(Luz... Porto)





Noite escura tomba em minh'alma,
Criatura errática, errante, noctívaga,
Movida à luz de velas, archotes, candeias,
Que ora se apagam com o vento voraz.
Nas trevas não tenho a quem invocar.
Ártemis não me quer pois não sou uma ninfa.
Sabás e missas negras nunca me atraíram.
Resta-me o Hades e seu esquecimento.
Psiquê, abro a caixa de Perséfone
E caio em eterno adormecimento.

(TRAGI)COMÉDIA HUMANA



(Luzia Porto)



Pior que a morte solitária
É o definhar-se em vida
Lento, doloroso, em gotas.
Atropos se demora cruel,
Lachesis se esmera em torturas.
A Cloto, fútil, pouco importa
A boa ou a má sorte distribuída
No desolado coração humano.
Aos deuses pouco se lhes dá
A tragédia que transcorre abaixo do Olimpo:
A má fortuna, as lágrimas que alagam, 
Os cravos que penetram a carne
Envelhecida, machucada, sofrida.
Aos deuses só interessam
Sacrifícios, ilações, peregrinações.
Que sejam cultuados em santuários
Ricos, suntuosos, esplendorosos.
Os deuses só querem servos
Tontos, assustados, vazios,
A quem possam manobrar
Como marionetes
E a quem possam esmagar qual insetos
Quando assim bem lhes aprouver.

DESENCANTO


(Luz... Porto)




De Narciso ouviu-se na floresta
Um grito infindo:
"Sou lindo! Sou lindo!"
Eco apenas respondia:
"Vou indo! Vou indo!"
E o belo rapaz se contemplava:
"Que paixão! Que paixão!"
A ninfa, pesarosa:
"És meu caixão! Caixão!"
Não satisfeito, continuava:
"Me morro de amores! Amores!"
E ela, com lágrimas nos olhos:
"Só dores! Só dores!"
E o não diálogo prosseguia
Por longos dias sem fim.
Ele, apenas se mirava - e definhava .
Ela, apenas definhava- e o mirava.
Por fim, num último suspiro, ele disse:
"Acenam-nos bons auspícios, auspícios!"
E, antes de partir, a pobre ninfa sussurrou:
"Me perco nos Campos Elísios, Elísios..."

AO CORVO 


(Luz... Porto)





O vento que soprava nos trigais
Era o mesmo que espargia meu cheiro
De fêmea tua, largada pra trás.
Caso fortuito, breve e passageiro.

De Poe, o corvo grasna: "Nunca mais!"
Meu ar de moça, lépido e fagueiro,
Envelheceu ao saber-se fugaz.
Feriu-se com teu tiro mais certeiro.

Não chora, disseste-me, ocupado
Em que eu alterasse o rumo traçado.
Dele te afastares? Sei... Incapaz!

Para, coração! Não vês que assim morres
Um pouco no dia-a-dia que escorre
Na ampulheta do tempo voraz?


FUNAMBÚLICO CORAÇÃO

(Luz... Porto)



Meu coração, cavalo chucro, 
Vaga pelas alamedas da casa
Quando ninguém o vê, 
Sem estrelas, sem luz, sem luar.

Meu coração, pangaré manco,
Busca, em vão, teu rastro, 
Em meio a pilhas de livros, 
De papéis empoeirados, de CDs.

Meu coração, lutador cansado,
Quer companhia, colo, regaço. 
No passado não encontra isto
E o futuro não acena com nada.

Meu coração, combalido e tristonho,
Nada, nada, nada e morre na praia. 
Víscera estúpida, nunca aprende
E não abre mão de seu sonho.