Friday, September 30, 2016

MUT(D)A AÇÃO

(Luz... Porto)




E a larva
Que traz em si
A semente
Tem medo
De dormir para sempre
Não sabe
Que de seu ventre
Sairá
Só(mente)
A borboleta
Jamais sonhada

Thursday, September 29, 2016

BOA NOITE, MÃE!

(Luz... Porto)


Tento dormir. Está difícil. Mais ainda pra você, eu sei. CTIs são um avanço, mas são tão frios... Tem a luz acesa o tempo todo. Como você nos atormentava em criança e na adolescência! Não se podia acender uma luz na casa que a réstia entrava sorrateira e te acordava. Acabamos aprendendo a driblar você.
Vamos conversar? Eu queria te contar uma dessas histórias que você nos contava. Não tenho os livros aqui. Os daí foram devorados pelas traças. Vou te contar o que fiz ontem. Na minha prática energética, surgiu uma meditação conduzida pela orientadora. Tão linda,mãe. Chega perto que eu te acaricio os cabelos até adormecer como eu fazia em criança. Pensei que tivesse esquecido, mas foi só minha mão adentrar seus cabelos que teimam em não embranquecer, que meus dedos redescobriram o caminho. Caminho só possível em suas melenas. Meus dedos ainda conhecem cada onda, cada curva...
Mas, vamos lá. Vou contando, acariciando os cabelos e dormiremos mais leves. Primeiro eu tinha de me conectar à terra, fincar minhas raizes. Pela primeira vez, senti a lama, o barro. E o cheiro de terra depois da chuva. Sabia que você estava a meu lado. Deveria imaginar a cor azul, mas veio o marrom. Não sou muito obediente na prática, como você deve perceber. Depois de brincar com as plantas, de criar com o barro, de me sentir uma árvore, criei uma ponte. Como me antecipo, já fui colorindo a ponte que era... Sabe o quê, mãe? Um arco-íris. Eu pude atravessar o arco-íris para te ver! Lembrei de Malba Tahan e do livro A Sombra do Arco-Íris. Como gostávamos desse romance! Lembrei também de você me contando O Mágico de Oz, o filme. Eu gostava era do livro. Só aprendi a apreciar Judy Garland muuuuito mais tarde.
Cruzei feliz e saltitante esse arco-íris, levando pedaços de cores e de nuvens até seu coração. Plantei nele uma rosa que floresceu! Uma rosa vermelha, igual à que trago em meu peito, com o miolo dourado. Precisei de uma redoma para evitar que a dor, maus pensamentos, ressentimentos, tristezas ou medos a fizessem fenecer. Consegui uma linda. Com um puxador de ouro. De tão bonita que é até dói de olhar muito pra ela. Mas é dessas dores boas, mãe. Dessas que deixam os olhos úmidos e um sorriso na boca.
Ela coube direitinho no seu coração junto às cores que trouxe do caminho para te alegrar. Não resisti e afastei o que mais havia em seu peito para me fazer pequena e voltar a me aninhar nele. Não interessa o que você leva em seu coração! De agora em diante, não saio mais dele e ponto! Ou você acha que atravessar um arco-íris é fácil? Depois te ensino. São muitas cores! É alto e cheio de nuvens. Quase trouxe pra você o Florzinha das Alturas, mas ele não aguentava de saudades da Emília e foi dar um pulinho no Sítio do Picapau Amarelo. Naquela casinha branca que tantas vezes imaginei. Quando a gente está em um Arco-Íris, é difícil caminhar. A gente só quer se misturar às cores e ser luz. Eu só atravessei porque senti que seu coração esperava por mim.
Vamos aproveitar, pegar uma toalha quadriculada e ficar lendo sob um flamboayant? Rá! Tinha flamboayants pelo caminho. A gente leva chá, pão de minuto, broa. E fica lagarteando, como Pedrinho fazia.
Depois? Depois eu tive de voltar, de me despedir de você. Mas não sou boba nem nada! Dobrei o arco íris bem dobradinho e guardei em meu peito. Agora sigo as estrelas para voltar à minha cama.
Os olhos já me pesam. E os seus, mãe? Pode deixar que não saio de perto até você adormecer.
Boa noite, mãe.
Sua filha,

Wednesday, September 28, 2016

COMO GOTEJAM OS SOROS...
(Luz... Porto)

Mal cochilara, acordara. Jurava ter ouvido um riso e barulho de grades. “As pessoas não respeitam mais nem os hospitais”. Aliás, como eram horríveis as noites em hospitais. Ela passara várias. Cuidara do avô, Carlos, ainda bem jovem. Não havia CTI. Ele, em coma. Grande aflição. Dormira com a  avó Irene, com o pai. Tantas vezes com o pai... Cuidara de uma de suas irmãs também. A solidão dos corredores, ocasionais passos rápidos, o relógio na parede. Seus ouvidos eram sensíveis e o tique-taque quase inaudível soava-lhe como tortura chinesa. Outra tortura, o soro. O gotejar do soro. Era preciso vigiar, acomodar a mão do paciente. Vigiar e orar. O  soro sempre acabava à noite e não se achava enfermeira para trocá-lo.
De novo o riso. Alerta, agora, divisou na penumbra sua mãe sentada e rindo, cochichando. “Mãe? Você tá bem?” “Tô conversando com um menino lindo! Olhos azuis, cabelos louros, cacheados. Ele corre de um lado para o outro.” “Não tem menino nenhum.” “Claro que tem! Você não vê? Ele não quer me dizer o nome...” “Você tá vendo coisas. Cuidado com o soro! Não se mexa muito!” “Quero ir ao banheiro.” “A enfermeira falou para você fazer na fralda.” “Não consigo. Ora, bolas! Não parei de usar fraldas antes de um ano para passar esse vexame burra velha! Me leva já!” “Calma! Preciso pegar o soro.” “Aaaaaaai!” “Machucou?” “O macaco! Você não viu? Acho que é um gorila. Tenho medo! Tira ele daí, tira! Não gosto de macacos!” e apertou os olhos, puxando as cobertas para si.
Achou por bem chamar a enfermeira. Puxou a campainha e... nada! Apertou o botão. Esperou. Foi até o corredor. Vazio. Posto de enfermagem. Ninguém. “É um pesadelo. Só pode ser.” Ao voltar viu a mãe com as pernas presas na grade. “Me tira daqui. Isso não é um hospital. É uma loja maçônica. Eles são contra a Igreja.” “De onde você tirou isso?” “O homem acabou de subir as escadas e falou bem alto. Fez um discurso.” “Calma. Vou tentar te tirar daí. Cuidado com o soro...” com muito custo, os ossos lhe doíam, os ossos da mãe doíam, tirou as pernas da mãe da grade. A mãe reclamava. Queria ir para a sala, sair da cama, verificar se a porta estava fechada, rezar junto à Santa Rita. Ela, que presenciara esses hábitos por mais de quarenta anos já quase esquecera da Santa Rita colada à porta da frente, presente da tia Cassinha, homônima à Santa. “Use para evitar que ladrões e o mal entrem em sua casa.”
“Vai acabar a água...” “Como assim?” “A torneira em cima da televisão está aberta. É muita água...” Mudando de abordagem, abriu as cortinas, empoeiradas para um hospital, pegou a escadinha da cama, subiu. “Vou fechar.” “Que bom, minha filha.” “É aqui?” “Você precisa ver esses óculos. Não tá enxergando nada! Não, né? Mais pra cima... Isso. Pro lado.” Ficando na ponta dos pés, alcançou a torneira imaginária e a fechou. “Imagina se seu pai estivesse aqui. Ele teria ataques. Detesta que falte água”. Ela se lembrou do pai. Nordestino, trazia o medo da seca em seu DNA. Seca que ele não sofrera de forma direta, mas cuja devastação presenciara na figura dos retirantes. Aposentado e com a mudança da rota da CEDAE, ele travara amizade com o “homem da água”. O São Pedro fluminense que trazia à cintura as chaves das bombas de rua para acioná-las e garantir a distribuição. Os vizinhos batiam à porta do pai. “Seu Paulo, é hoje que cai água? Que horas?” Lá ia o pai para a caixa onde ficava a bomba, ao pé da ladeira. Que aflição ela sentia ao ver o pai, meio gordo, descer a escadinha mal iluminada e sumir no buraco para ligar a bomba! Seu camarada, o da CEDAE, mandara fazer uma cópia da chave e o pai evitava assim que os vizinhos ficassem com as cisternas vazias e que reclamações fossem feitas à empresa. Saudades desse tempo...
“Ouça, minha filha. Uma festa! Cada música que tocam... Falta de respeito!” “Onde, mãe?” “Na casa ao lado. Cruz credo! Música dos infernos!” A mãe se benze, tapa os ouvidos e balança a cabeça. Súbito, senta-se empertigada, leva a mão direita ao peito e começa a entoar: “Allons enfants de la Patrie, le jour de Gloire est arrivé”. A filha canta também. Admira-lhe que com essa idade a mãe se lembrasse da Marseillaise inteira. “O que foi isso, mãe?” “Ah, chegou um homem importante. Cantaram um hino e agora ele discursa no palácio.” “palácio?” “Sim. Do Estado do Rio. Você não vê?” “Tem uma árvore na minha frente, mãe.” “Saia daí. Nossa! Quanta gente na rua. Acho... acho... A guerra acabou, minha filha! Que alívio!” “Nem fala, mãe. Amanhã falo com tia Neném e Cocó. Vamos fazer um coq au vin para celebrar!” “Com tarte tatin? Que bom, mãe!”
“Me leva ao banheiro?” “Levo.” Equilibrando-se entre amparar a mãe e manter o soro no alto, acompanhou-a ao banheiro. A mãe sorria, embevecida. “Você não vai me dizer o seu nome?” “Eu?” “Não, menina! O garoto de olhos azuis trouxe uma garotinha pela mão. Linda, toda arrumadinha! Os cabelos brilham ao sol...” “Quem é ela?” “Parece Henriette aos dois anos de idade. Vem dar um beijo na Dindinha. Epa! Ela não está sozinha. São duas. Gêmeas!” “Vamos voltar pra cama com cuidado, tá?” Com alguma dificuldade acomoda a mãe ao leito e prende o soro ao suporte na parede. “Que hospital! A que ponto chegou a saúde no Brasil!”
“Ele está desenhando.” “O menino?” “Sim.” Fazendo o gesto de quem recebe uma folha, exclama: “Nossa! Que beleza! Mas... É Friburgo!” Os olhos ficam úmidos. “Friburgo, mãe?” Mostra o desenho à filha. “Claro! Você não reconhece?” “Estou sem óculos.” “Pois é. Vocês todas herdaram a minha miopia... Veja bem. É bastante sofisticado para um menino pequeno. Ele desenhou um lago cercado por aquelas árvores de Friburgo. Eucaliptos. Aqui tem as montanhas. Parece o Cão Sentado. Nunca tinha visto por esse ângulo. Papai nos levava para piqueniques. É lá, eu sei.” A expressão da mãe se modifica. Há um ar de travessura. “Que houve, mãe?” “Ele mergulhou no lago. Está acenando pra mim.” Levantando os braços, fez um gesto de mergulho. “Não! O soro! Olha, vamos fazer assim. Lembra quando você quebrou o braço e nadava com ele pra cima, enrolado em um plástico?” “Sim. Foi legal. Você tá achando que eu tô gagá? Tenho memória!” “Então... A brincadeira é assim. Vou amarrar esse braço à sua cintura e você toma esse pedaço de atadura. Faz o mesmo com o menino. Vocês têm de ver quem nada melhor amarrado.” Pegando a atadura imaginária a mãe falou “Você só tem ideia besta. Brincadeira sem graça! Menino, vem cá. Preciso te amarrar. É uma brincadeira sem graça que minha filha inventou. Como? Não dá pra nadar? Vamos ver quem boia melhor. Nossa! Como a água está fria!” Encolheu-se na cama e sorriu. “Friburgo... Já estava esquecendo... Água fria. Agora as nuvens passaram e o sol brilha a pino. Que lindo! Daqui vejo as árvores, as montanhas. Posso até fechar os olhos que continuo a ver. Entra aqui, minha filha.” “Não sei nadar...” “É verdade! Um absurdo eu ter filha que não nada. Duas! Você não sabe o que está perdendo...”
Passados alguns longos minutos, talvez meia-hora, a mãe grita. “Volte aqui! Minha filha, ele está correndo! Me diz seu nome, Espera por mim!” “Vai atrás dele, mamãe. Não esquece que o braço está preso.” “Ele está entrando por uma porta grande” “Onde?” “Aqui.” Apontou a parede. “Entra, mãe.” “Que lindo... Meu Deus...” Começou a chorar. “O que foi agora, mãe?” “É a sala de vovó. A casa de vovó. Estão todos aqui. Nacele, tia Neném, Cocó, mamãe. É Natal! Tem uma lareira acesa. O fogo crepita.” “Está frio? Aqui dentro, não. Estou com um vestido de veludo grená, uma fita nos cabelos, sapatos de verniz e meias brancas. Vovó está viva! Quero abraçar todo mundo.” “Abraça, mãe.” A filha com a voz embargada imagina a cena, entre emocionada e aterrorizada com duas possibilidades terríveis: Alzheimer ou a morte iminente. “O pinheiro de Natal está lindo. Papai o enfeitou. Sei que foi ele. E o presépio? Tem até moinho com água. Não vejo papai. Nacele está com um vestido de veludo verde. Combina com os olhos dela. Os sapatos também são de boneca. Quem é aquela? Ih. É mamãe. Tão elegante. Senta-se ao piano e toca Chopin. Nem me lembrava mais que ela também tocava...” “O que ela está tocando?” “A Pollonaise.” Mãe e filha acompanham a melodia com a mão. “Epa! Ela continua a música. Improvisa. Faz variações. Parece mesmo uma concertista. Emocionante, minha filha! Todos a aplaudem.” Seca os olhos. A filha já se esquecera que fora a avó a responsável por buscar a formação musical da filha mais velha. Único luxo, aliás, que a avó permitira na vida familiar árdua e difícil que tivera.
“Oba! Hora da ceia! Tanta coisa gostosa! Fios de ovos! Chuviscos! Lembra dos doces de Nenga e Cota?” “Inesquecíveis.” “Quer um pedaço?” “Claro!” “Tem peru, frango, porco, arroz, farofa! De lamber os beiços! Xiii! Vão botar a gente pra dormir... Não quero!” “Obedeça sua mãe.” Quem sabe assim ela não sossega, indagava-se a filha exausta. “Ei! Está escuro. Tudo escuro. Só a lareira acesa. Não! Não acredito! É ele! Papai Noel! Papai Noel, quero um beijo. Vamos atrás dele, Nacele. Droga! Fugiu. Todo ano é assim!” “E agora?” “As luzes estão acesas. Vamos abrir os presentes. Não acredito!!!! Ganhei uma casa de bonecas! Linda! Perfeita! Tem todos os cômodos. Tem móveis. As portas têm maçaneta e abrem. As janelas também. Meu Deus! Tem descarga no banheiro! Com água!” “O que Nacele ganhou?” “Um cavalo de madeira. Lindo! Ele balança. Os olhos brilham. Ei, menino. Volta aqui.” “Ele está na festa?” “Sim. Está me dando uma caixa de lápis de cera. Estamos desenhando perto da lareira. Me diz seu nome. Queria tanto que ele dissesse: Jesus, minha filha...” “Pode ser outra criança, mãe.” “Que maçada! Hora de dormir. Deixa eu ficar mais um pouco, mãe. Ela não deixa...” “Melhor obedecer” “Ih! Ganhamos pijamas novos! O meu tem um urso. O de Nacele tem um cachorrinho. Mamãe, quero dormir com a casinha, deixa. Não, não vou brincar. Só quando acordar. Tem lugar aqui ao pé da cama. Deixa, vai?” “O que mamãe Irene respondeu?” “Ela desceu e está subindo com os brinquedos. Tomara que amanhã faça sol. Vou ver meu jardim, cheio de rosas, margaridas, begônias. Bênção, mãe” “Isso, mamãe. Vê se descansa agora para poder brincar muito.”

A mãe fechou os olhos sonolenta. “Que noite! Outra dessas eu não aguento!” Ia voltar para o sofá e descansar o corpo quando ouviu um risinho. “Ele respondeu.” “O menino?” “Ele se chama Carlinhos...” Enternecida viu a mãe adormecer em sono profundo com um sorriso angelical nos lábios.


ONDINAS
(Luz... Porto)




Hoje levei mamãe para passear. Na praia, claro. Ela adora. Como o dia estava chuvoso e o CTI é muito sombrio, pedi ajuda a vários anjinhos. Eles afastaram as nuvens, o sol brilhou. Pedi uma mãozinha. Mamãe gostava de levar pedras e conchas para casa. Com as conchas, ela decorava alguns canteiros. As pedras enfeitavam a gruta de Nossa Senhora de Lourdes que, com muito zelo, ela arrumara em uma parte de seu armário.
Levamos um baldinho, meu baldinho de praia, esquecido em um sótão ou no porão. Era azul e a pazinha amarela. Fomos catando as conchas mais bonitas. Ouvimos as cantigas do mar naquelas conchas espiraladas que remetem a cornucópias.
Foi nossa primeira ida à praia só nos duas. Eu, criança, ela, a mãe não tão jovem para a época. Ajudou-me a construir castelos que as ondas desfaziam e ensinou-me a não chorar por eles. Poderia fazê-los mais distantes, mas não haveria o cheiro marítimo nem a beleza do mar em seus azuis que chegam a cinza.
Não sei nadar. Nunca aprendi. Mamãe, criatura aquática, exímia nadadora, tomou-me pelas mãos e fomos caminhando, passo a passo, rostos contra a brisa, na direção do mar. Adentramos mais e mais. Meu tímpano perfurado não chiava. Sereias nos abraçavam. Da areia, pessoas gritavam para que parássemos. Não era o Mar Vermelho, mas as águas se abriram e mergulhamos felizes em suas profundezas. Mãe e filha para sempre....

MAIS UM SONETO
(Luz... Porto)



Era dele a única fotografia na parede. Isto é, a única que importava. E como doía... Para disfarçar, fizera algo que aprendera em um dos contos do Father Brown, de G. K. Chesterton. Escondera-a em meio a mais de uma dezena de retratos na parede da sala íntima. Acrescentara pessoas importantes que, para ela, não significavam nada. Algumas pessoas cujo nome ela chegava a ignorar. Não, a fotografia nunca fora descoberta. Nem pelo marido, nem pelos filhos, nem pelos amigos.
Ele também guardara a mesma foto. Como não podia mostrar, queimara-a sem que lhe escorresse uma lágrima pelo rosto. Mas as cinzas se colaram ao inconsciente e assombravam-lhe os sonhos. Dos quais, jurava, jamais se recordava. Por vezes acordava assustado. Por outras, mal humorado. Em algumas ocasiões, nostálgico. Um retrato queimado não haveria de doer... Que tolo!
Ela aprendera a conviver com a dor, úlcera que teimava em abrir nos momentos mais desconcertantes. Valia-se de sucos alcalinizantes e de sucos detox. De meditação, yoga, amantes. Era voluntária em uma casa para idosos e isso lhe tomava tempo e amor.
Ele ignorava a dor. Enterrara-a, queimara-a. Abandonara a dor no dia em que a abandonou de forma covarde. Desenvolvera uma gastrite que virou úlcera. Volta e meia sangrava e chegou a se operar. Seguia uma dieta severa. Apesar de simpático, bem humorado, uma aura de amargor passou a cercá-lo.
Depois de um tempo, ela se recuperou. Conseguiu perder peso, a pele ganhou novo viço. Corrigiu umas imperfeições da idade. Quando sonhava com ele, gravava ou escrevia. E rezava um Pai-Nosso e a Prece de Cáritas. Fez o que nunca tivera coragem. Saltou de parapente, escondida da família. Sentiu-se livre como uma águia.
Com o tempo, a visão foi se turvando e ele se sentia inseguro. A artrose foi pesando. As cãs foram tomando seus cabelos. Surgiu uma barriguinha de chopp, que nunca tivera. Experimentou umas garotinhas. Carne nova, pele lisa, frescor da juventude. A esposa soube e ele se retraiu. Percebeu-se preso em uma teia que ajudara a tecer.
As fotografias, externa e interna, nunca deixaram de pulsar, marcadas a ferro.
Em outra encarnação...
Quem sabe?