Wednesday, November 09, 2016


As Valquírias 
(Luz... Porto)


Essa noite fui acordada por um Anjo que me chamava: "Depressa! Tua mãe está indo". Ainda mergulhada num estado entre a vigília e o sono, levantei-me e perguntei:  "Indo para onde?" "Eu te levo ".
Os problemas aqui da Terra, deixei-os e percorri dimensões. Encontrei-a cavalgando em solo nórdico. Era uma jovem, loura, cabelos longos ao vento, presos por dois pentes, atrás de cada orelha. Parecia, assim, ter asas.
-Mãe?
-Ah. Você está aí? Venha.
-Não sei cavalgar. Não me consta que você saiba.
Ela riu. Com um ar sapeca, deu de ombros.
-Estou livre.
-Livre? Você... Você se foi?
-Não. Mas descobri que posso ser livre. Você não fica falando do cordão de prata? Então... Saio do meu corpo e vou aonde quero. Pega logo um cavalo e  vem.
Quando dei por mim, já estava com roupa adequada e cavalgava ao lado dela. Cavalgava nada. Galopávamos. Saltávamos obstáculos. Estava frio, é claro, mas não sentíamos. Paramos à beira de um fiorde. Contemplamos, do alto, o mar gelado batendo contra as pedras.
-O livro que vovô te deu?
-Sim. Você não queria saber o que é um fjord?
-Você me explicou, mãe.
-Vê a força da natureza? A força da água? Ela que esculpiu essa paisagem. Não subestime os signos de água. Nem um canceriano... Sempre soube que não era um signo que te agradasse. Aprende a respeitar o zodíaco inteiro! Vocês leoninos...
-Nunca me passou pela cabeça que você se interessasse por astrologia...
-De onde estou, nesse 'in-between', pairando sobre os dois mundos, tenho tempo. Até demais... Recordo-me de coisas às quais não prestei atenção. Meu espírito está quase livre. Posso ousar o que nunca ousei. Fazer o que nunca fiz. Nada me garante que do lado de lá será o descanso eterno. Talvez haja trabalho...
-Creio que sim, mãe. Deve haver. Aproveita esse limiar e sonha. Descansa.
-Você bem sabe que não quero descansar. Desisti da morte há uns dois anos.
Montamos novamente e rumamos a uma floresta. Adentramos. Parecia um dos contos de fada nórdicos que eu li. Prendemos os cavalos a uma árvore, perto de um rio. Sentamo-nos e comemos um farnel que ela trouxera. Faisão, nozes e outras iguarias. O Anjo ou Arcanjo que me trouxera observava de longe. Ela fez um sinal e A Cavalgada das Valquírias se fez ouvir.
-Prefiro as transcrições para piano. Não me lembro de quais você tocava. 
-Uma de suas favoritas. A Morte de Isolda. Há tantos anos perdi minha vista e deixei de tocar com partitura...
-É uma vergonha, mãe. Não sei o nome das peças que você tocava. Volta e meia deparo-me com uma no YouTube. Internet...
-Você cedeu. Acabou gostando de música clássica além da Popular. A que você chama de MPB.
-Difícil não gostar do que é belo.
-Sempre quis que você estudasse desenho. Talvez pintura. Você desenhava tão bem... Não tínhamos dinheiro. As aulas de inglês já eram um luxo.  Por mim, você também estudaria francês.
-Francês eu queria. Teria preferido música a desenho, eu acho. Coral, suponho. Mas tocar piano é o máximo. Se bem que tocar cravo é divino. E violino?
-Não achava que você tivesse a disciplina para  o piano. Muito menos para o balé. 
-Balé não. Piano talvez. É tão bonito.
-Mas foi uma luta quando você tinha dez anos. Eu querendo voltar a tocar e você presa à televisão... Já sei. Era o raio do Agente 86.
-Pena que sua coluna chiou...
-Pena, pena, pena... Sou uma coleção do que não fui. Não fui médica. Não fui pianista famosa. Não  publiquei UM livro. Não fui boa mãe. Até como compositora falhei. Onde estão minhas fitas com o registro de minhas músicas? Em um plástico qualquer. Arrebentadas. Mofadas.
-Ai, mãe. Você foi a mãe que pode ser. No meu caso, talvez a que eu precisasse ter...
-Você fala assim porque estou indo. Aliás, como você chora!
-Sempre fui chorona. Você sabe.
-Sei. Mas não precisa herdar de mim o que tenho de pior. Vai cuidar da sua vida.
-Vou tentar...
-Tentar não! Vai cuidar. Já. Ou você acha que chegar aos 91 é fácil? Que é pra qualquer um?
-Sei que não é. Na verdade, não esperava que você fosse durar tanto...
-Vai agourar a mãe!
Rimos. Distraímo-nos com animais que passavam.  Queria pegar um esquilo no colo, acariciar uma corça.
-Não são seus gatos!
-E você não gostaria de tocá-los?
-Tentei antes de você chegar.
Ficamos caladas, ouvindo o barulho das águas.  Senti uma ponta de tristeza.
-Mãe? 
-Sim?
-Como faço para te ver?
- E não está me vendo?
-Quando eu sentir saudades?
-Por enquanto? Ué? Dorme. Dorme e sonha. Pede a seu Anjo da Guarda para te trazer.
-E...
-E?
-E depois?
-Não sei. Não me lembro  de ter morrido antes. Sonha. Reza. Eu continuo em vocês. Aff! Queria tanto um bisneto... Você vai me sentir na praia. Nos tomateiros. Nos flamboyants, ipês, bicos de papagaio. Nas flores de maio que plantei para você. Nas nuvens. Em Friburgo. Nas peças clássicas. 
-Não queria me separar...
-Aposto como você queria muito menos se separar de seu pai. Ele se foi...
-Mãe?
-O quê?
-Eu sempre quis que você me amasse. Sempre quis ser importante para você.
Pegando na minha mão, ela me puxou ao seu colo, abraçando-me.
-Eu também,  minha filha. Eu também.
Amanheci com lágrimas nos olhos. A medicina tradicional não sabe. Cordões umbilicais são muito difíceis de serem cortados