Friday, October 31, 2014

HELLO, EVE


(Luz... Porto)



Há um ano eu fui quase feliz.
Montava em vassoura com meu gato,
Riscava os céus pra te ver de fato.
Mas tua janela? Nem por um triz...


Há um ano posava eu de bruxa:
Negro, roxo, colar, meia e bota,
Sombra, carmim, batom, rímel. Puxa!
Produzi-me em vão feito idiota!

Tu não me querias, não me queres.
Usaste palavras, frases ocas.
Esperei o amor que não me deste.

Restou um gosto amargo na boca,
Confundiu-me o leste com o oeste
E te firo c'o desprezo que me feres.

Monday, October 27, 2014

ANDORINHA
(Luz... Porto)
Imagem de Rosemary Oliveira

Ontem eu não dei Bom Dia,
Nem Boa Tarde ou Boa Noite.
Filomela violada por um maldito,
Não me cabe mais a fala.

Hoje não darei Bom Dia,
Nem Boa Tarde ou Boa Noite.
Com um punhal cortaram-me.
Sem língua, só me resta bordar.

E vou tecendo minha triste sina,
Com dedos já feridos por agulhas.
Dedos ágrafos, coração sem voz.
Mas rogo aos deuses surdos

Que minha prece seja ouvida,
Que tenha fim o meu penar.
Que transformem a mim
Em singela andorinha a bailar.

Se as gralhas têm seu grasnar,
Aos cães cabem uivar e latir,
Os gatos sabem miar
Por que ninguém pode me ouvir?

Que pecado terei cometido,
Virgem zelosa na casa do pai?
Vós, Imortais do Olimpo,
De mim não ouviram meus ais.

Assistiram-me a perdição de camarote
Entre ambrosias e néctares sublimes.
Poderíeis ao louco ter destituído
A virilidade com um piparote.

As Moiras são enigmas à parte:
Fiam, tecem, cortam a seu bel-prazer.
Pouco se lhes dá a parca sorte
Do humano que vive a sofrer.

Mas quem sabe o milagre não se dê
À mortal que sempre vive à mercê,
E possa amanhã desejar Bom Dia,
Quiçá, Boa Tarde, quem dera, Boa Noite...

RELÓGIO DE BOLSO


(Luz... Porto)




"É tarde, é tarde, é tarde, 
É tarde, é tarde, é tarde",
Dizia o Coelho impiedoso,
"O tempo urge, o leão ruge".
Que inocente! Eu agarrava
Os ponteiros e, tonta Alice,
Arrastava-me aos pés de tão
Pérfida criatura branca.
A juventude ficou pra trás...
Não tenho mais coelhos nem
Suas pressas e presas tolas.
Conheci outros, é verdade...
Até sofri com seu sexo
Rápido, rasteiro e sua fome
Impiedosa, insaciável.
Hoje só quero felinos:
Sinceros, lânguidos, tranquilos,
Que, em lugar de relógios, 
Me acenem co'a eternidade
No fundo de olhos azuis,
Amarelos e verdes.


CAMPOS DE PROVENCE.

(Luz.. Porto)
À Sívia Helena
Esta noite não sonhei. Apenas dormi profundamente, como Manoel Bandeira o fez em um de seus poemas. Acredito em coisas consideradas 'estranhas'. Acredito na alma. Acredito que haja alguma espécie de ligação entre elas. Acredito que quando dormimos nossa alma passeia, vagueia e tem a chance de se encontrar com outras afins.
Pois bem. Essa noite estive em um campo de lavandas na França. Um campo lindo, a perder de vista. Uma brisa suave nos fazia crer em primavera e não no outono que já se instaurou no Hemisfério Norte. E ali, em meio a tantas flores, encontrei-me finalmente com aquela que gostaria de vir de Santos a Niterói para comemorar meu aniversário ano que vem.
Conversamos como velhas amigas. Sorvemos o aroma delicado e penetrante daquelas flores que nos lavam a alma. Nossos olhos se perderam em êxtase na imensidão de tons lilases. Boa música era ouvida bem baixinho. Zéfiro nos brindou com cantatas. As Musas inspiraram Orfeu que interpretou Bach, Mozart, Vivaldi.
Visitamos também Giverny. Contemplamos nenúfares e ninfeias. Almoçamos ao ar livre, sentadas ao redor de uma longa mesa coberta com uma toalha xadrez vermelha e branca. Pintores, escritores, poetas, escultores sentaram-se conosco. Não havia barreira de língua, época, credo, posição política. Tudo transcorria na mais perfeita paz. O tempo estava suspenso. As horas não corriam, como se Cronos nos tivesse dado uma trégua e, ao invés de devorar seus filhos, os deixasse desfrutar de uma farta e colorida refeição com os amigos.
Pouco a pouco, as pessoas foram se despedindo, voltando às suas casas. Um belo crepúsculo ameaçava se anunciar. Senti que era hora de partir. Soube também que ela se dirigia para outras esferas. Abraçamo-nos e ela disse: "Até qualquer hora, Luzia Luz. Já, já vou dar o meu 'Boa noite, pessoas felizes'". E foi caminhando, passo a passo na direção do sol poente.
Acordei com lágrimas nos olhos. Mas feliz por vê-la tão bem. Até breve, querida Sílvia.