Thursday, June 27, 2013

A carta abortada

(Luz... Porto)
À minha filha

E assim, das gotas de suor da deusa,
Da deusa vencida, da deusa abatida,
Das gotas que lhe corriam pela testa
Misturadas Às lágrimas e ao sangue.
Dessas gotas foi surgindo sua prole.
Alguns, ao tocarem o chão, feneciam.
Outros, ao contrário,
Desabrochavam e floriam.
À moda da Parábola do Semeador,
A deusa, pouco sagrada, sabia que nada, nada,
Dependia dela, antes do solo onde fossem caindo.
Dependia deste o destino de suas criaturas.
E dessa deusa, nem um pouco mãe, surgiram
Titãs, Mares, Céus, Musas, Górgonas, Moiras.
Já que o ventre lhe negara filhos,
A Natureza achou por bem
Que ela os gerasse de outra forma.
E assim, em um parto contínuo e febril,
Sem parteiras, sem anestésicos,
Foi povoando o seu inconsciente,
E o de alguns poucos escolhidos pela Sorte,
Com entes fantásticos e mitológicos.
Até que um dia, sem que ela soubesse,
Já que esses seres lhe fugiam ao controle e à consciência,
Até que um dia, um desses seres corporificados
Veio até ela, beijou-lhe a fronte
E chamou-lhe: "Mãe".
A deusa, cansada e desiludida,enterneceu-se.
De seus seios há muito empedernidos,
Começaram a jorrar leite e mel.
Beijando a espuma do mar, deram origem à Afrodite.
Não à Afrodite de Hesíodo, Homero ou Boticcelli.
A uma Afrodite etérea, cercada de ninfas marinhas
Que lhe pensou as feridas do coração e da alma.
Pronto! Sua vida não fora,
No fim das contas, em vão....