Thursday, March 02, 2017


O CÉU QUE NOS PROTEGE

(Luz... Porto)




Quando eu era criança, uns sete anos, talvez, minha irmã me levou para assistir Pinocchio. Elas me levavam ao cinema com frequência. Chorei horrores. Sempre choro. Até hoje.
Por alguma razão, permanecemos no cinema e assistimos de novo. Fiquei encantadíssima com a Fada Azul e com a música WHEN YOU WISH UPON A STAR. Até hoje choro com ela.
Do alto da minha infância, eu chorava, em parte, por ver no boneco de madeira a semelhança com a criação do Homem. O amor do Criador pela Criatura. Gepetto, de gorro e camisolão, faz o pedido à estrela. Um pedido impossível. Como um boneco de madeira pode se tornar um menino de carne e osso?
As fadas existem para isso, suponho. Essa, ao contrário de outras, não faz exatamente uma mágica. Submete o boneco a provas. Difíceis. Há de se provar o caráter, a têmpera, para se conseguir a vida. E não a eterna... 
Chorei porque o boneco era um boneco menino, dado a travessuras, sugestionável. Pensei em Adão e Eva. Por que proibi-los de comer o fruto de apenas UMA árvore? Pareceu -me cruel. Certamente o foi. Por conta de UMA falta, perdemos o Paraíso. Por conta da credulidade, Pinóquio quase não consegue o seu desejo. Pausa. Seu desejo. Do Criador ou da Criatura? Para ser salvo, o boneco de madeira oferece sua "vida" para salvar o Gepetto. Então a bela Fada Azul, a que ostenta uma estrela na testa, volta e há o final feliz.
De todas as fadas dos desenhos, a Fada Azul é minha favorita. Ela é mais democrática. "When you wish upon a star makes no difference who you are..." Não faz diferença quem você seja. Ela vai lhe conceder seu desejo, de acordo com o seu merecimento.
Conversando com uma amiga querida, disse-lhe que gostaria de ser visitada pela Fada Azul. Que precisava dessa visita. Muito gentilmente, ela, que me chama de fada, disse que eu sou a própria Fada Azul. Quem dera... Mas fiquei feliz e honrada com a comparação. Como boa junguiana que sou, o Face me devolve essa foto, postada há muitos anos. Ela tem um valor especial para mim. Minha médica, que além da medicina, entende muito de artes variadas, foi pintar o banheiro do consultório, após o conserto de um vazamento do andar de cima. O teto ficou meio manchado, era difícil tirar as manchas, então ela fez o que era sábio: transformou o teto em um céu. Tento, há anos, encontrar alguém que saiba reproduzir, esse céu com anjos, nuvens e borboletas, no meu quarto.
Parece uma besteira, mas adoraria ver, desfocado pela miopia, esse céu onde coexistem anjos, borboletas, pássaros e... gansos! Vejo gansos!. A esse céu eu acrescentaria outras imagens, as que eu bem entendesse. Um cometa, com certeza. Muitos gostam de espelho no teto. Eu não. Gosto é de céu. Dormiria e meu espírito, chamado pelas angelicais criaturas alçaria voo rumo às alturas, até que um dia alcançasse o infinito.
Como não posso te dar o seu pedido, só rezar e torcer por ele, envio meu texto e meu céu. Veja o privilégio: não gosto de dividir esse céu de que me apropriei apenas na fotografia. Vamos voar por sobre as nuvens até a tempestade passar? Você, que entende de asas, me ensina?

Wednesday, March 01, 2017

O VOO DOS GANSOS
(Luz... Porto) 
Para mamãe



Carminho contemplava o mar que banhava sua cidade. Naquele trecho, havia seixos, conchas. A areia não era lisa. Ela sonhava em cruzá-lo a nado e em pegar um navio que a levasse para além das montanhas.
Ela não sabia muita geografia ainda, mas o pai a presenteara com um livro lindo de contos de fada nórdicos. Ela se imaginava nos fiordes, nas florestas geladas, cercada por fadas, dríades, elfos e gnomos.
Queria ser duas coisas na vida: médica como o pai, e violinista profissional. Atrair pessoas para si, como o fizera o Flautista de Hamelin. Adoraria que as árvores balançassem e que o vento soprasse conforme as notas fossem sendo suavemente retiradas das cordas com o arco.
Médica, a mãe não a deixaria ser. "Não é coisa de moça de família. Quem vai querer casar com uma médica?" Violinista era outra coisa. A mãe apreciava muito a boa música e lhe contratava professoras que a ensinassem, pensando, futuramente, em uma Escola de Música na Capital.
Dona de uma imaginação fértil, ou dotada de habilidades mediúnicas, coisa que a mãe, católica tradicional até a medula, jamais aceitaria, a menina via e sentia coisas estranhas. Por vezes se isolava na natureza para ouvir a música das estrelas, fosse isso o que fosse, ou para entrar em contato com seus "amigos imaginários."
Em uma tarde de outono, sentou-se à beira d'água e ousou arriscar uns passos dentro da água. Deu pulinhos de alegria. Estava fria, como gostava, e uma corrente elétrica acordou-lhe os sentidos. Viu a água parar suas obdulações por um momento para refletir uma cena em um suposto futuro. Viu uma velhinha em uma cama branca, diferente de tudo o que poderia imaginar. Saíam tubos de seu corpo. A senhora estava muito cansada e queria partir. Três mulheres a cercavam. A mais nova entregava-lhe escondida uma pena de ganso e dizia "Para você fazer seu primeiro voo. Como nos contos de fada. Vá. Não tenha medo". E a pena era colocada sob o travesseiro. Atrás da cama, em outro plano, via a mãe, o pai, a irmã, um homem que a olhava com amor e anjos que a aguardavam. Ouviu-se um apito longo e agudo e a paciente voou.
Carminho, um tanto perplexa, saiu correndo da água. Levaria uma bronca da mãe que, em casa, cuidava da irmã. As tias que a acompanhavam eram mais lenientes e permitiam que a pequena fizesse suas travessuras.
A menina foi crescendo, mas aquele cantinho era seu. Era nele que chorava suas mágoas, que contava seus segredos. Tornou-se mulher. Violinista também. Carreira? Foi deixada de lado. A mãe tivera uma caçula com sequelas do parto. Um pouquinho de falta de oxigenação na hora do parto selou-lhe o destino. Para sempre dependente. O dinheiro que os pais economizaram foi pelo ralo. Buscaram tratamentos. Havia poucos.
Começaram a trabalhar cedo, Carminho e sua irmã, Olga. Carminho conheceu um rapaz bem mais velho, vindo de outra cidade. Não era rico, mas trabalhador e honesto. Tinha muito carinho pela família da namorada. Casaram-se. Ela parou de dar aulas e concertos. Tornou-se uma dona de casa sem muito talento e uma mãe dedicada às filhas.
Os anos se passaram, a Vida foi deixando suas marcas, trazendo-lhe netos, quatro. Mudou-se para outra cidade onde pode finalmente nadar em paz. Uns morreram. Muitos. Outros ficaram. Ela cuidava da irmã caçula, Águeda. As filhas se casaram ou foram morar sozinhas. Guardou o livro de Contos de Fada Nórdicos a sete chaves. Só o mostrou à Clara, sua caçula, curiosa como o quê.
Sem que se desse conta, estava em uma cama de hospital, sofrendo. Estava entubada, cansada. O coração velho parara, mas fora "ressuscitada". As filhas e netos a visitavam. Falavam, faziam perguntas que ela não tinha como responder. Rezavam, cantavam. Ela só queria ir embora, descansar. Deus não tinha piedade? Sentiu que a caçula colocava algo sob o travesseiro. Uma pena? Uma pluma? Ouviu as palavras "voar", "para sempre". Era um dos contos! Não tinha como virar a cabeça. Percebeu que os pais, o marido, Olga e outros a aguardavam. Conseguiu mexer o braço. Algo se desconectou.As máquinas apitaram. Voou puxada pelos três gansos mágicos rumo à eternidade.

*Imagem de Marilia Fayh