Wednesday, December 31, 2014

À POE


(Luz... Porto)



Quando corvos e abutres
Rufarem as asas em teu peito roído,
Devorando-te a carne putrefata,
Não hesites:
Lança mão do punhal mais certeiro,
Rasga-te em silêncio e contrição
E deixa que o sangue vermelho
Lave as feridas do teu coração.
E, mesmo trôpego e claudicante,
Forja com teus ossos um cajado.
Deixa tudo pra trás e segue,
Ainda que mancando,
Em busca da tua paz.


BEWARE

(Luz... Porto)



Você, menina prendada,
Tome muito, muito cuidado
Com essa gente que se diz
Maior carente ou abandonado.
Chegam de mansinho,
Suaves como gatos,
Doces como pão de mel....
Qual nada!
Nada têm de gatinho
E como sabem destilar fel!
Seu coração estará por um triz,
Nunca saberá se vão ou se ficam.
Se precisar de companhia,
Sozinha você estará.
Quanto à geladeira, como bicam!
Pão de mel não restará.
Se quiser conversar,
A seu lado, um adormecido.
Na hora de repousar,
Um rapaz a tagarelar...
Cuidado, cuidado, menina:
Adote um gato, canário ou um cão.
Ao menos terá um amigo
Que nunca lhe morderá a mão.


CORROSÃO

(Luzia Porto)



Meu corpo estraçalhado
Emerge trôpego e vacilante
Do abismo em que me afundei:
Areia movediça e pantanosa
Que me chama de volta ao lodo.
E nesse vai e vem,
Nesse tomba e levanta
Em que arrebento pernas,
Braços, joelhos e juntas,
Nem sei se me reconstruo
Ou se me destruo de vez.
De meu corpo corroído, devorado
Por Harpias, vermes, insetos,
Formou-se um véu filigranado
Por onde escoam lágrimas,
Sangue, suor, bile e pus.
Putrefação, estupor e cansaço.
Resta a alma... Que resto!
Ela espera e se esvai pelos veios,
Pelas frestas, rumo ao Nada.

A ARTE DA CERÂMICA

(Luz... Porto)

"Lembra-te de que és pó e ao pó retornarás." (Gênesis 3:19)




Tome um vaso de tamanho médio
Feito de argila macia
E esmague-o em partículas diminutas.
Leve-as a seu coração - ou alma -
Através das grades que te separam
Da verdadeira arte.
Umedeça-as com lágrimas escaldantes
Até que elas se tornem um punhado de lama.
Misture a lama entre seus dedos.
Sinta-a. Toque-a. Ouça o que ela te diz.
Só então modele um vaso.
Não o anterior,
Mas aquele com que você sempre sonhou.
Coza o vaso no fogo
Que arde em teu espírito.
Aguarde o tempo que for preciso
E você terá o recipiente de sua própria lavra.

Este é o único caminho para a criação.
Esta é a única forma de salvação.


CACTUS

(Luz... Porto)



Minha palavra rouca e muda
Não floresce em solo espinhoso.
Nem com toda e qualquer ajuda
Medra em coração tenebroso.

Minha palavra só e surda
Seca em meu peito perfurado.
Adaga, faca ou cimitarra,
Sangue e espírito assim me furtam.

Ando da vida tão cansado...
De mim se afastou a guitarra.
Dói-me bem bastante a ilíaca

E, fraca, a víscera cardíaca,
Que, de tropeço em tropeção,
Quebra-se de vez rente ao chão.


CALIGRAFIA

(Luz... Porto)


Pedi-lhe que incrustasse
Seu amor em minha pele,
Por mais que me custasse
Bico de pena, pincel e nanquim.
Ele recusou-se. "Não te marco.
Pode doer e não mais sair"
Achei bonito o gesto carinhoso.
Ele, o exímio calígrafo da região,
Não tatuar, em tez virgem,
Ideogramas que nem carvão.
Tola, boba que eu era,
Não previ sua partida.
Faço eu caminho pedregoso
Em busca do grão vizir
Que me arranjará grande barco
Para no oceano me sumir.
O vizir ordena :"Dispa-te"
Deixo cair meu quimono...
Com surpresa chama os sábios
Que põem-se de pronto a examinar
Alfabeto cirílico enfeitando meu dorso
Confabulam, trazem alfarrábios
Passam-se horas. Com esforço
Leem-me a brasa incandescente:
"Foste minha esta noite
E outra e outra e outra.
Para sempre o serás.
Não haverá borracha,
Punhal ou mágica poção
Que desfaça esse encanto.
Se parti, precisei. Não voltarei.
Não te desfaças assim em pranto
Arranja um bom campônio
Casa-te com ele. Marcas não verá.
Agora que já o sabes
Concentra-te ao dormires:
Será comigo nas noites quentes
Que, de prazer, galoparás."

Tuesday, December 30, 2014



COLCHA DE RETALHOS
(Luz... Porto)


Quis meu Deus fazer de mim
Colcha de retalhos de chita,
Dessas bem vagabundas, 
Baratas, tipo assim, assim.
Deus foi me retalhando o ventre,
As entranhas, num corte-recorte 
Infantil, torto, desencaixado de sorte
Que os filhos com que sonhei 
Nem de longe forma tiveram.
Foi lento o negócio, demorado.
Um entra e sai de cirurgias, hospitais.
Incômodos, sustos, gases, dores.
E toma pedra, quebra pedra.
O talho ficou enorme, disforme.
Na vesícula, erro médico. Quase morri.
Perdi veia, afinaram-me o sangue. 
Sequela de remédios, já sou meio exangue.
Não pude consertar a menopausa precoce, 
A obesidade, as veias na bexiga.
Hipertensão, epilepsia.
Sou boneco de vodu 
Em que deus sádico e cruel 
Erra em dor o que ele chama de arte.
Obstruções, infecções, meu Deus!
Não poderia ter emprestado a estrela
Para um dos reis magos 
Me presentear com um diagnóstico fiel?
Não! Foram treze! Número cabalístico.
Treze especialistas cegos a anteciparem minha passagem
E a não examinarem o que eu tinha. 
Ao décimo-terceiro coube
A revelação de meu estado
Já avançado, não tinha recuperação.
As cordas me cortaram e com custo
Reaprendi, como criança, a falar.
Quando estou melhor, novo susto.
Dessa vez afetado um pulmão.
E a fístula faz com que me afogue
Com comida, saliva, respiração.
Virei um quebra-cabeças malfadado
Nas mãos de um deus perverso
Que se ri e se contorce
E pede: "Mais um, mais um corte"
Com minha desgraça na pele.
Piedade? De quem?
A qual deus recorrer se todos me faltam.
Eu naufrago, mal respiro,
E eles jogam na porrinha
Para ver quem acerta
O dia da minha morte.