Wednesday, August 03, 2016


PARA UMA MENINA COM UMA FLOR


(Luzia Porto)

Pelo aniversário da querida Luana Medeiros.



Quando entrei para a Cultura Inglesa, uma de minhas colegas estava grávida. Entramos em férias em julho e ela não retornou aquele semestre, a não ser para nos mostrar sua filha, um bebê lindinho.
Era colega, não amiga, e só fui prestar atenção à menina quando ela contava uns três anos, acho. Foi em uma das festas de fim de semestre, não das maiores, no auditório. Em uma das salas amplas do segundo andar. Olhei a meu redor e vi um tiquinho de gente, meio encolhida. Concentrada e atenta, sentava-se a uma cadeira e seus pés ficavam balançando. Tinha um ar meio "emburrado", meio daqueles "Não me perturba. Tenho a minha mãe." Fascinada por crianças e, reconhecendo nela um certo ar que eu tinha em criança, aproximei-me dela com muito cuidado. Gatos e crianças se parecem. Sobretudo gatos que não têm um lar. Podem ser efusivos, fazem carinho em todos ou são retraídos, como quem aprendeu a desconfiar das intenções humanas. Nesses casos há que se ter muita paciência. Oferecer comida de longe, piscar e miar para o gato e ficar sentada para não parecer tão maior que o bichano e esperar. Repetir o procedimento, evitar gestos bruscos, falar alto.
Sentei-me devagar ao lado da menina e olhei-a com um sorriso. Ela me olhou. Então,,com cuidado, puxei conversa. Ela foi me respondendo com monossílabos. Logo achei um jeito de falar da mãe, de dizer que gostava e admirava o talento dela, o que era verdade. Não se deve mentir a uma criança. Reparei em um brinquinho que ela usava, em forma de um cachinho de uva. "Foi minha mãe que me deu". Não me dei ao trabalho de mostrar minhas bijuterias enormes. Comecei a contar histórias e ela foi se abrindo, prestando atenção.
Essa interação prosseguiu anos a fio. Uma vez ela pediu que eu desenhasse uma história. Fomos a uma outra sala e desenhei no quadro. Fomos criando a história juntas. Reparei que ela usava tamancos brancos com uma fivela atrás. "Minha mãe tem igual". Tudo era "minha mãe" e aquele toquinho de gente não soava nem parecia uma miniatura forçada como muitas mães tentam fazer. Era espontânea a semelhança. Era amor.
Ao longo dos anos eu a vi crescer. Tornar-se menos tímida. E me reconhecer. Não me lembro bem das outras crianças. Não sei se participavam desses encontros. Talvez não. Ela sempre fora comportada naquele ambiente como uma mocinha devia ser.
Um dia, ela já estava com uns oito ou nove anos, passeando pelo Campo de São Bento, ela pediu à mãe que comprasse um brinco para mim. Mas com o dinheiro da mesada dela. Escolheu um prateado com pingentes pendurados e pedrinhas brilhantes no centro da flor que se colava à orelha e em cada um dos três pingentes. Fiquei emocionadíssima. Chorei por dentro, emocionada. Guardei-o com carinho e só o usava em ocasiões especiais. Era um amuleto, uma espécie de medalha ungida, não por um padre, mas pelo carinho sincero de uma criança linda com um coração enorme.
Quis a vida que uns dois anos mais tarde eu me visse acometida de uma forte virose e que um dis exames fizesse um hematologista de renome e competência desconfiar do pior. O médico que tratava de mim, além de competentíssimo e uma pessoa de caráter ilibado, era meu aluno. Ligou-me numa quarta-feira pela manhã e, sem deixar transparecer sua preocupação, disse que já ligara para um médico do meu plano e que eu deveria vê-lo à tarde. Por mais delicado que tenha sido, percebi logo que o assunto era sério e pensei: "estão cogitando em leucemia". Estavam. Liguei para minha irmã, marquei com ela. Exausta, rezei e voltei a dormir. Almocei, tomei banho e decidi ir produzida para que ninguém, nem eu mesma, pudéssemos cogitar a possibilidade da doença. Botei vestido novo, perfume, maquiei-me e lembrei dos brincos. Com muita fé, pensei:"Nada de mal vai me acontecer. Carrego o amor de uma criança." 
De fato, foram dez dias de exames e mais exames, de dores, de reação a remédios, mas não. Não era leucemia. Agradeci, rezei. E comentei com
Bia Medeiros o "poder" dos tais brincos.

Hoje, três mudanças depois, um deles infelizmente se perdeu. Mas a energia de afeto que ficou impressa neles, eu a carrego em meu coração. Muitas vezes durante a doença de meu pai, ia para o hospital com os brincos. Meu pai se foi, mas tive eu e tivemos eu e ele muita sorte. Sorte em conseguir diversas formas de ajuda, de apoio.
Há dois meses "mudei de função". Isto é, continuo professora (tutora, aff), mas trabalho na EAD, Ensino a Distância. Uma experiência nova, diferente. Há muito a aprender e preciso me acostumar com as ferramentas, os procedimentos e protocolos.
Há dois meses, apresentei-me ao "núcleo" da EAD, à minha coordenadora. O lugar é enorme e não dá para ver todos os colegas que trabalham lá. A coordenadora me levou, me apresentou ao pessoal da "mesa", o pessoal que trabalha com a parte de gerência, burocrática e tecnológica. Quando ela me apresentou à chefe do setor, observei imediatamente suas orelhas. Brincos em forma de cacho de uva. Lembrei-me de você, Luana, e pedi para fotografá-la com eles. Ela não deixou, mas tirou um para a foto. Soube, nesse momento que eu era bem-vinda...



https://www.youtube.com/watch?v=5f-T3oUtSHI