Sunday, April 15, 2007


SANTA LUZIA
Daniel Junior

o q dizer...
só q nao sou merecedor
as reticências servem sempre pra explicar
o tornado na China,
o olhar da menina,
a fome no Japão

me sinto um fardo, me sinto um ladrão
nesta lida de aventura de furtar
valha-me Deus de ser ladrão da tua casa
e hoje te encontrar,
por aqui.

diz pra mim... de q serve meu semblante assim
vendo teu rosto como quem imagina Santa Luzia
descer do altar pra perdoar
seu pecador
que nem fez por entender a Graça de Deus
que não entende nem a Semana Santa do saber
que é pra onde vai quem não entende de entender

Digo-te claro:
dói mais do que se eu tivesse morrido
é da jugular, é da ferida e é dolorido
que colorido tens na tua sina!

Santa Luzia
castra minha língua e dominarei meu corpo
perdoa minha alma e estarei disposto
a não encarar a tua face
Santa Luzia


MARIA SEM-VERGONHA
(Luz... Porto)
Á minha segunda filha

Deus me deu uma filha
No tempo de madureza
Quando o ventre, mal semeado,
Já murchou e secou todo o fruto.

Deus, ou o diabo, sabe-se lá,
Me deu uma filha,
Mas não aos poucos, de zigoto a feto.
Deu-me filha já pronta, mal criada,
Geniosa, desengonçada,estragada.

Quis Deus que a encantadora criatura
Me chegasse às mãos ressequidas,
Pela falta de acalanto,
Já formada, já perdida, já achada.

Deus, ou o diabo, se é que ele existe,
Promoveu o encontro dessas almas
Separadas por abismos insondáveis
E por Cronos, deus malévolo e tinhoso,
Que por filhos não nutre lá grandes simpatias.

Quis Ele, ou ele, se é que me entendem,
Que eu me reconhecesse por trás do boné xadrez,
Por dentro dos tímidos olhos de jabuticaba,
Por cima daqueles pés tão cheinhos e bem-feitos,
No enfeite de cabelo infantil em sonho tomado,
Reaparecido por milagre na casa de minha mocidade.

Deus, ou o diabo, ou os dois,
Quis que de meu seio empedernido
Brotasse o leite da partilha,
O mel das noites insones
E o fel que todo amor traz escondido em seu âmago.

Meu fruto, que já soube a verme,
Sabe a provocação, peraltices, implicâncias.
A pequenos objetos discretamente furtados:
Uma toalha aqui, um chinelo ali, uma mala acolá.

Meu fruto, banda de música a encher a casa vazia,
Sabe também a aconchego, a dengo, a carinho e a ciúmes impossíveis.

Meu campo de flores não é de rosas,
Lírios, zínias, orquídeas ou hortênsias,
Mas de margaridas, flores do campo, marias-sem-vergonha
Que, se colhidas de seu habitat natural,
Fenecem qual peixe fora d'água.




ATLÂNTIDA
(Luz... Porto)

Eu vi uma cidade flutuar submersa.
Seus portos, ruas, praças e mendigos soçobraram
Mumificados pelo pó de antigas crenças,
Dogmas, certezas e verdades inabaláveis.

Eu vi tal cidade ser tragada pelo oceano
Qual dejetos capturados no triturador de alimentos
E vi pernas, braços,seios, mãos, dedos, todos cortados,
Fatiados num sinistro salame, banquete de Posseidon.

Eu vi os corpos aos pedaços
Naufragarem cegos, surdos, atordoados,
Claudicando suas dores, arrastando correntes,
Num turbilhão de delírios, convulsões e marasmos.

Eu vi seus habitantes não verem
Que haviam sido devorados, que nada permanecera igual
Pois que tudo de fato pouco se modificara:
Superfície e profundeza igualavam-se no vazio.

Eu vi uma cidade ser tomada pelas trevas,
Iluminada por luzes de neon plasmático.
A meia-noite ser o meio-dia.
Rostos opacos tornarem-se translúcidos.

Eu vi plâncton fértil ser trocado por pílulas multicores;
Amantes, professores, médicos, sacerdotes, por seu simulacro virtual.
A água-mãe em acre vinagre se transmutar
E o pão nosso de cada dia converter-se em pedra.

Eu vi o fim dos tempos - ou o início? -
Vi a Arca da Aliança ser rompida,
Sodoma, Gomorra, Babilônia, Nínive virarem sal.
Ícaro incendiar-se, bola incandescente, rumo ao sol.

Eu vi o Alfa encontrar o Ômega,
O Sétimo Selo ser estraçalhado,
Eros e Tanathos se beijarem em conjunção carnal,
Deus e o Diabo se fundirem no derradeiro Caos.

Eu vi uma cidade flutuar submersa.