Saturday, June 17, 2006


Promíscua
(Luz... Porto)
Minhas pernas trôpegas
Transitaram por tantas avenidas,
Alamedas, becos, labirintos.
Minhas pernas já se enroscaram
Em tantas outras mais ou menos cabeludas.
Meus lábios sedentos
Tentaram, em vão, saciar sua sede
Em bocas, barbas e bigodes,
Mas só encontraram água salobra.
Meus braços
Buscaram abraços que me aquecessem.
Só acharam peitos fechados,
Corações empedernidos.
Minha sina misturou-se a tantas outras, sem tino,
Que destracei de vez todo o meu destino
E enganei as Parcas sombrias.
Meus olhos tanto procuraram
Por aqueles em cujas íris
Pudessem se ver refletidos
Que acabaram em poças de água
Parada, nauseante, pestilenta.
Meus olhos envelheceram
Antes de cruzarem com os teus
Nalguma esquina do tempo,
Perdidos na multidão.
E toda a doçura que traziam
Talhou qual leite estragado
E virou fel, vinagre, ácido.
Por que demoraste tanto?
Por que não me avisaste que virias?
Ter-me-ia congelado,
Mumificado, embalsamado
Para que inda guardasse
Alguma ternura para te ofertar.


Luz de Emergência
(Luz... Porto)
Só funciono em blackout,
Em tsunami, em furacão.
Só sirvo para atender o 911.
Aí eu entro em cena,
Faço respiração boca-a-boca,
Ressuscito pacientes com parada cardíaca.
Subo em árvores, telhados,
Para resgatar gatos acuados.
Entro em briga de cachorro grande,
Aplico antitetânica,
Injeto adrenalina na veia
E então tenho valia.
Nos dias de calmaria,
De sol de verão,
Fico guardada na prateleira, esquecida.
O telefone não toca,
O interfone não chama.
Quando a brisa sopra suave
Não tenho companhia.
Pintou depressão, pânico, angústia,
Vontade de se suicidar,
Eu apareço, sou procurada.
Precisam de minhas palavras,
Minhas mãos, meus abraços, minha voz.
É prova final, recuperação,
Eu entro em ação.
Só não sirvo para a rotina,
A não ser para aquela dramática,
Para os almoços de domingo,
Bares de sábado,
Chopps de sexta,
Jantares de gala.
Por isso fui batizada
Como eu fui.
Ainda no ventre materno,
Minha mãe adivinhou-me a sina,
Talvez num pesadelo ou sobressalto.
Mas da santa que me nomeia
Restou-me uma
Única e solitária função:
Ser luz de emergência.


De Profundis
(Luz... Porto)
Meu pensamento tornou-se obsessivo.
Meu caminho se repete 'ad infinitum'.
Por que sou eu o elo perdido de minha cadeia evolutiva?
Por que sou sempre reprovada na escola da vida
E tenho que refazer várias vezes os meus passos,
Encontrar as mesmas pedras, atravessar os mesmos abismos?
Quando virá o Embuçado, aquele que com sua espada
Cortará a floresta de espinhos venenosos
Que me separam de mim mesma, de meu destino?
Ou será que cabe a mim a sina
De ser apenas Aurora, a princesa eternamente adormecida
E imutável no seu leito-féretro de rosas esmaecidas?
Se for isso, por que me terá dado Deus
O perfil astrológico que me deu?
Teria Ele querido zombar da condição humana,
De mim, vestindo-me de veludo púrpura,
Dando-me coroa e cetro,
A mim, mera serviçal, mera escrava?
Por que teria Ele me dado o brasão da realeza,
Logo a mim, simples copeira de palácio?
Por que teria eu nascido com essa angústia,
Essa agonia, que de mim nunca se dissociam?
Se há um novo caminho,
Por que são meus olhos cegos a ele?
Se há novas estradas,
Por que não tenho eu sapatos
Que me caibam para desbravá-los?
Se minha alma é bailarina, musicista, cantora,
Por que meu corpo não tem coordenação, ritmo ou voz?
Será o fado a mim destinado
O de ser a mera observadora enjaulada
De um grande espetáculo de luz, de som, de fúria?
Será este o meu carma:
Ter de assistir de camarote
À vida que se me desfila
Sedutora ante os olhos marejados
Sem que meu corpo possa efetuar o menor movimento
Para dela participar, modificando o seu trajeto?
Se trago no ventre as sementes da maçã
Por que não me brotaram as macieiras?
Seriam as sementes podres
Ou tê-las-ia eu plantado em solo ingrato?
Será que me assiste o direito de lamentar
Se o que me reserva a vida,
Em última análise, é o sono,
É esse mundo onírico e inconsciente
Ao qual devo finalmente me entregar?




Post-Mortem
(Luz... Porto)

Exausta, após ter tombado, ultrapassando o chão
Que amparou o meu cadáver,
Imergi num mundo para além do espelho.
Não havia coelho branco, nem gato, nem biscoito mágico.
As coisas não estavam às avessas:
O avesso das coisas era eu mesma:
Eu, avessa a tudo, avessa à vida, avessa ao amor.
Atrás do espelho as coisas não eram tortas:
A torta era eu, com alma torta, genes tortos, torto DNA.
Meu desejo torto foi o que me levou para o reverso
Desse verso controverso.
Por causa dele a Rainha de Copas
Mandou me deceparem a cabeça,
Furou-me o peito com suas longas unhas vermelhas
Só para que meu ralo sangue azul
Jorrasse rubro por sobre as tábuas claras,
Manchando-as de profundo escarlate.
A cruel soberana invejava-me a pena, a lira,
Ou, quem sabe, aqueles parcos fios alvos e sem cor.
Naquele mundo sem vida, sem morte
Para além do bem e do mal
Ficou meu sorriso congelado num esgar.
A máscara mortuária não coube em mim.
Quebrou-se o espelho
E quedei-me exangue, exaurida
Num limbo onde não há esquecimento, nem memória
Ao qual fui sentenciada
Sem julgamento, sem apelo, sem perdão.


3X Morte
(Luz... Porto)

Por três noites escuras procurei por ti.
Três vezes clamei Teu santo nome no deserto,
Sussurrando-o em vão.
Gemi por entre as pedras úmidas da rua chuvosa
Que guardava nos paralelepípedos
Vestígios quentes de minhas lágrimas,
Derramadas, descuidadas, perdidas, pendentes.

Por três noites sonhei contigo.
Assombraste-me a alma,
Esquivaste-te de mim
E a saliva secou-me na garganta fechada.
As lágrimas endureceram no meu olhar:
Cataratas em minha vista já cansada.
Não foi de escárnio nem de zombaria
O sorriso que se me colou à face num esgar de dor.

Por três noites não dormi por ti,
Sentindo tua aura tocar de leve na minha
A velar-me o sono que não vinha.

Por três vezes me morri por ti
E me morro e me mato e me enterro
Para, na manhã seguinte, ressurgir,
Fênix de asas quebradas,
Por entre as cinzas de um coração
Já há muito necrosado.


Saturnal
(Luz... Porto)

Se eu pudesse escolher o meu desejo,
Eu queria renascer em outro corpo,
Outra alma, outro país, outra memória
Ou com a bênção da não-lembrança.
Nem sei se seria mulher, fêmea, menina, matriz.
Talvez fosse macho, homem, áspero, cortante e viril.
Mas seria morena, cor de jambo
Como os mouros. Lisos cabelos azeviche.
Profundos olhos negros e um espírito prático.
Não seria mais um leão de fogo
A consumir-me eternamente
Em amor, desejo, ânsia de criar.
Seria antes touro-terra, ou melhor, capricórnio:
Cabra selvagem, teimosa, auto-suficiente,
Auge do inverno, a vencer, escalar montanhas.
Fria, pouco sentimental e determinada.
Saturnina, obstinada, rocha imutável, impenetrável.
Bastar-me-ia a mim mesma:
Ermitã solitária dos bosques
Ou executivo entronado
Em rica cadeira de alto espaldar.
Teria homens ou mulheres a meu redor
Que de tudo fariam para me ter.
E saberia escolhê-los a dedo, conforme minha conveniência.
Apaixonar-me, luxo desnecessário
A um monge ensimesmado, não aconteceria.
Seria eu a manipulá-los, a segurar,
Com mãos calejadas e dentes fortes,
As rédeas do cavalo de meu desejo.
E, quando a neve cobrisse de todo minha cabeça,
Quando o Tempo tornasse-me o rosto,
Papiro resistente, cheio de hieróglifos,
Pudesse ser eu admirada
Por meus feitos, minhas conquistas,
Meu tesouro: projeto concreto levado ao fim,
Por minha família frondosa,
Árvore arraigada em solo firme
Da qual eu seria a matriarca respeitada.



ESPECTRAL
(Luz... Porto)

Viagens noturnas, sombrias.
Sempre a falta de companhia
Me faz buscar o parceiro
E, com um tiro certeiro,
Ele me abate, sem piedade.
Eu, pedra de alto quilate,
Sou trocada em mercados
Como forma primitiva de escambo.
Julgam-me por meus pecados:
Não passo de um molambo.
Olhar ao redor e ver a casa vazia
Só me faz sentir arrepios.
Tomado por perversa magia,
Meu corpo sacode com calafrios.
Acordar à noite assustada
Sem ter ninguém ao lado
É minha maldição,
Condição que me foi imposta,
Desde a minha errônea concepção.
O medo vem, me visita
E espalha a dor pelos travesseiros da madrugada.


BERCEUSE
(Luz... Porto)
Dorme, minha alma,
Dorme.
Adentra o mundo dos sonhos
Sem sustos:
Os seres que ali habitam
Não querem te assustar.
Dorme, tranqüila...
Repousa o corpo cansado no meu colo
E recebe teus fantasmas.
Eles só querem conversar
E te contar segredos, espanar as traças
Largadas nas poltronas de tua madrugada insone,
Nos cantos mofados de teu guarda-roupa.
Eles só querem um pouco de ar, um pouco de luz.
Eles estão cabeludos, com unhas grandes
Porque não lhes cortas os cabelos nem lhes aparas as unhas.
Traze deles a lembrança de outras vidas.
De vidas possíveis, de vidas paralelas, de vidas imaginadas.
Dorme sem diazepam,
Sem maracujina, sem hipnose.
Dorme como um gato,
Abandonada e alerta.
Abandono para os sonhos,
Alerta para a vida.
Dorme, que não tarda a aurora
De dedos róseos, mas já sujos de fuligem.
Deixa que ela te conduza
Para o sol que brilha tímido
Numa longa jornada dia adentro.