Wednesday, September 30, 2015

FRAGMENTO

(LUZ... PORTO)




E ele me olhava, me contemplava na cama, sentado à mesa. Cabelos desfeitos, camiseta dele por conta do ar refrigerado. Lia tanta coisa nos seus olhos, que enrubescia. Baixava os meus e danava a falar. E ele me ouvindo como se cada sílaba, cada fonema, cada silêncio, fosse a coisa mais importante do mundo. O amor jamais confessado me inundava e eu era feliz. Só aquele olhar de amor teria valido a minha vida. Só aquele ouvir atento transformava nossos momentos em cenas que congelaríamos para os dias de inverno. Aquela lenha - e como havia lenha - ainda arderia. Mas não sei. Talvez minha miopia tenha embaralhado as coisas. Talvez a lenha estivesse verde. Talvez o Destino tenha dito simplesmente: ‘Não’.”



https://www.youtube.com/watch?v=5YXVMCHG-Nk

Monday, September 28, 2015

MAIS UM SONETO


(Luz... Porto)




Era dele a única fotografia na parede. Isto é, a única que importava. E como doía... Para disfarçar, fizera algo que aprendera em um dos contos do Father Brown, de G. K. Chesterton. Escondera-a em meio a mais de uma dezena de retratos na parede da sala íntima. Acrescentara pessoas importantes que, para ela, não significavam nada. Algumas pessoas cujo nome ela chegava a ignorar. Não, a fotografia nunca fora descoberta. Nem pelo marido, nem pelos filhos, nem pelos amigos.
Ele também guardara a mesma foto. Como não podia mostrar, queimara-a sem que lhe escorresse uma lágrima pelo rosto. Mas as cinzas se colaram ao inconsciente e assombravam-lhe os sonhos. Dos quais, jurava, jamais se recordava. Por vezes acordava assustado. Por outras, mal humorado. Em algumas ocasiões, nostálgico. Um retrato queimado não haveria de doer. Que tolo!
Ela aprendera a conviver com a dor, úlcera que teimava em abrir nos momentos mais desconcertantes. Valia-se de sucos alcalinizantes e de sucos detox. De meditação, yoga, amantes. Era voluntária em uma casa para idosos e isso lhe tomava tempo e amor.
Ele ignorava a dor. Enterrara-a, queimara-a. Abandonara a dor no dia em que a abandonou de forma covarde. Desenvolvera uma gastrite que virou úlcera. Volta e meia sangrava e chegou a se operar. Seguia uma dieta severa. Apesar de simpático, bem humorado, uma aura de amargor passou a cercá-lo.
Depois de um tempo, ela se recuperou. Conseguiu perder peso, a pele ganhou novo viço. Corrigiu umas imperfeições da idade. Quando sonhava com ele, gravava ou escrevia. E rezava um Pai-Nosso e a Prece de Cáritas. Fez o que nunca tivera coragem. Saltou de parapente, escondida da família. Sentiu-se livre como uma águia.
Com o tempo, a visão foi se turvando e ele se sentia inseguro. A artrose foi pesando. As cãs foram tomando seus cabelos. Surgiu uma barriguinha de chopp, que nunca tivera. Experimentou umas garotinhas. Carne nova, pele lisa, frescor da juventude. A esposa soube e ele se retraiu. Percebeu-se preso em uma teia que ajudara a tecer.
As fotografias, externa e interna, nunca deixaram de pulsar, marcadas a ferro.
Em outra encarnação...
Quem sabe?